terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Em vez de sangue

é entre o fulgor bélico dos movimentos
que reconheço o meu corpo
qual silêncio intermitente
nos momentos mais cruciais do terror.
rasgamos as várias formas de holocausto
para que as várias formas de holocausto
se multipliquem por mais formas de holocausto.
vivemos das oscilações, reconhece.
tudo se resume a um dinamismo necessário,
a uma sensação efervescente no tecido dos dias.
o organismo preso à realidade,
a realidade dispersa na velocidade de existir.
e é nas fugas que nos reconhecemos
e que nos rescrevemos: fugir integrou parte da nossa postura no mundo.
no interior das veias
possuímos caos em vez de sangue.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A ouvir o mar da cama

o mar no inverno é uma cabeça dilatada
uma floresta de lâmpadas
onde celebras a aparição do frio.
as raízes do sono escoam o escuro
dentro da memória a água é suave.
os dedos tocam a superfície da respiração
no lirismo tóxico dos sonhos.
o canto das ondas feridas
atravessa a existência.
os relâmpagos afogados no rosto
a areia desdobrada sobre o útero.
estas são as imagens de vocabulário
deitadas incrustadas nos lençóis.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Dicas para um desempregado

coloca todos os dias o despertador para a mesma hora
e utiliza o sistema linguístico que preferires no silêncio.
tens muitos canais à escolha,
escolhe aquele que te evadir primeiro
sai da cama e sente-te inválido
como a chuva que hoje chove e amanhã não
os dias no calendário que se sucedem
e nada acontece
escreve por graça e escreve de graça
quando não se tem não se gasta
recebe as prestações sociais para te pagarem as compras no Lidl
bebe mais ou menos a mesma quantidade de álcool,
masturba-te durante a tarde
telefona aos teus pais,
verifica se já morreu mais alguém.
procede até ao fim do dia até ao fim da noite,
procede até ao fim.




em "O Movimento Impróprio do Mundo" Âncora Editora, 2016

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Autorretrato

febre inquieta,
desejo de artista,
mar selvagem
no aroma do gelo.
um olhar fixo
sobre as vítimas periféricas
na parte asiática do meu desejo.
segmentos de sombra justificáveis
na convocação das pálpebras,
o tédio nos bolsos junto ao
smartphone permissivo.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O sepulcro-espelho

tens um pedaço de madeira na carne,
há uma beleza a inchar
os teus os seios centrífugos.
lentamente a ferida lambe o gato
que se junta à ciência da embriaguez.
o movimento impróprio do mundo
incomoda-te.
eu sei que a claridade do sexo te acalma
mas a tua idade lenta tem vindo a
deformar o amor.
queres humedecer os nervos
com escuridão.
a harmonia demoníaca do teu desejo
sacrifica-se mais uma vez pelos livros ardentes.
deixa que o sepulcro te masturbe.

terça-feira, 21 de julho de 2015

O Estudante de Relações Internacionais

Conheci-te em Judaberg numa noite íngreme. 
A neve tingia-nos a voz. O apetite melancólico
da ilha aproximou-te imediatamente do meu corpo 
e, apesar dos sorrisos cordiais, partilhávamos
o mesmo fascínio pela guerra.

Contos europeus ardiam pela vodka com sangue,
ascendiam pela madrugada cada vez mais nossa.
O 4 de Julho é o dia em que Sigismundo II
anexa a Lituânia à Polónia. No século XX
deportaram-te familiares para a Sibéria.
O mar do norte raspava-nos as palavras,
enquanto a neve nos esmagava contra
o esquecimento da ilha. Sabia que podia
partilhar contigo a minha dívida soberana,
a minha identidade republicana, a ausência
de sono, o medo e o existencialismo.
Combinámos encontrar-nos algures entre
o Império Otomano e o Bizantino,
por volta de Agosto. Eu apanhei o avião
tu vieste de autocarro. Quando lá chegámos
o sul da Europa já não te interessava porque
estavas deslumbrado com os conflitos no Líbano.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A semiótica do sucesso

ninguém te viu como eu te vi,
um sobressalto de sangue,
uma tradução nebulosa
um poema escrito no metro em direção a Odivelas
isto porque eu sei que ninguém te escreveu
ou contemplou a enfermidade
que trazes esculpida na alma
talvez porque mais ninguém traz letras suficientes
na boca,
talvez porque te pareças com uma ave ferida
pela pós-modernidade,
e o meu instinto é demasiado solto
na tua postura muito reta
na gravata inesperada aos trinta
toda a tua invisibilidade relata
a semiótica do sucesso.
no teu fato construído com a paciência neoliberal
que tanto dizes apreciar
enquanto secretamente querias passar os dias

comigo e uns gramas de marijuana.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Crítica Literária

as árvores ensopam o domingo lento
que se acumula junto aos pés
pelo musgo no colo sei que estás em direto
acusas-me de ter um corpo miúdo
acusas-me sempre do mesmo

do corpo que se expande pelo poema
sabes que me vou esvair em ásia
sabes que são horas de esclarecer
o propósito desses assassinatos.

vesti a saia de fósforos, a tua preferida 
no meu ventre asteca queres incendiar o mundo.
na procriação da sala
visto ao poema um refrão ecológico.

o corpo miúdo amiúde hermético como a geladeira
onde deixaste aquele ensaio esvair-se em sangue.

acusas-me de nunca me separar da casa.

de braços cruzados na contemplação da sorte
eu diria que é o trânsito das portas
e o sossego do Tejo
naquele quadro do anterior arrendatário. 

é um verão longo no rodapé da razão

e o meu uivo domesticado
tem raízes no simbolismo, continuas,

largo os pés de vez
em direção à página branca
ao militarismo trémulo da tua voz

de encontro à pele críptica do papel
acusas a boca de se habituar à fotografia
e as notícias de saquearem a grafia
na sala procriam-se palavras irregulares.


uma casa corpo, não passo de.

domingo, 12 de abril de 2015

Tudo amadurece,

até o silêncio
aquele que ressoa por esta febre
febre que se arrasta pelo poema,
poema que se verga
para o seu interior de mar.
as rosas brotam
o leite envenenado
dos nossos direitos mais antigos.
o avião transporta o peso
da luz
e a água da manhã atravessa
o brilho abandonado das mulheres
selvagens que te tecem o sono.
amanhã as fábricas recomeçam
a queimar os seus mortos

e deus ressuscitará entretanto. 

sábado, 11 de abril de 2015

Cheguei demasiado cedo

ao colo da floresta,
quando falei,
falei extremamente baixo
sobre as mitologias
da linguagem.
se alguém me ouviu
foi porque este oceano pedestre
a que chamas existência
me deixou mergulhar
nas vertigens dos campos.
deixa-me conduzir
esta voz

até à intimidade do céu.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

O cabelo abre-se na chuva,

a praça flutua
pela atenção palpitante.
o silêncio quer enlouquecer
de forma audível.
e o rosto esconde a noite
enquanto os ecos das montanhas
nos envolvem
em possibilidades infinitas.
a minha arte é plástica:
uma tela molhada
em peregrinação lírica.
a matéria reinventa-se no útero dos nomes.



quinta-feira, 9 de abril de 2015

Uma imagem lenta

vou enquadrar-te nesta folha
através de uma imagem lenta.
quero que saibas que penso em ti
e que o pensamento de ti é uma turbulência.
fazem hoje cem anos desde que a arte te previu
num sorriso de tabaco no canto da página.
não te quero dar conselhos apenas observar
que Janeiro é um mês altamente inflamável
e que sinto a sombra dos teus poros na minha pele.
peço-te ainda que me recues das palavras agudas
e deixes a cidade gravitar em mim,
sou carne sem fôlego e sem poética
numa clareza incessante de árvores noturnas.

estendo-te a mão na noite contínua. 

Tensão

a comida engelha-se na boca
o vinho é de qualidade reconstituída
como a mobília
a família vai desaguando com cuidado.

todas as personagens têm personalidades vencidas
penduram-se nas paredes
engole-se o bom senso
pois dele não se alimenta o pulmão da sala.

vamos demolindo o português até às reticências.
falamos de assuntos
e deixamos o vidro das conclusões
rodopiar.
por cima do vinho e do sangue em vinho
os conhecidos e os inocentes, os infiéis
somos suprassumos da lógica
mestres da verdade
ligamos a televisão
para não termos que partir pratos.



quarta-feira, 8 de abril de 2015

A literatura é uma fábrica

com miolos azuis
manhãs burguesas,
telefones ou telemóveis que vibram com os lábios
um automóvel, um prédio
um fascismo vulnerável
num horizonte proletário,
a lógica escorrega-me
diretamente da gargalhada,
mas o meu género é subgénero
asfixiado,
transpirado
transpira pelas paredes.
que venha o fado
ou então o gado, para facilitar,

talvez o gado.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Liberdade

a liberdade é deixar-se estar a meio dos desejos
é uma procura de ardores
uma rua onde Ramos Rosa adiou o amor.
os séculos sucederam-se
no ventre da lenha
onde ardem todas as bandeiras do mundo.
deixa-me na margem do Outono
porque a liberdade é cinzenta
como os braços da terra
falta-me procurar a liberdade
na cintura da chuva, no riso da arma.
quero desfiar a voz para encontrar a retórica do medo.
tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator, adultério, amor
mas eu quero renascer das balas
e trazer-te livre
derramar-te no oceano com o mesmo sangue dos atores,
do adultério e do acaso.
não se ama a liberdade,
bebe-se liberdade
misturada com espumante e terror.
é o rasto da revolta
é o desprezo pelo erro.
hoje liberto-me de ti, amor
e tudo é um acaso gelado,

uma ação livre e miserável.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Tenho a sabedoria de possuir

uma civilização comprida
com a beleza a encharcar-me
os antebraços. 
deito-me na extensão desta doença,
adormeço nos corredores inexplorados
do medo.
o tempo mede a viagem
e a viagem cresce por dentro
do mármore.
deixa-me acreditar na noite
e nas paredes dançantes,
nos lugares corrigidos
onde se cumprem
as peregrinações da fome.
um homem dispara contra mim a liberdade,
morro em silêncio
na presença simples dos lábios,

nas formas concretas que desafiam os objetos.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Amplifica o ator que há em ti

com escudos de fogo,
flechas paradas nas cavidades do gesto,
a metamorfose das grutas dos nomes
onde nos escondemos num exemplo de inflexão.
um elenco de monstros
surge aos olhos cinematográficos do dia-a-dia.

a vida parece refugiar-se no lado central dos nervos.

domingo, 29 de março de 2015

Vou-te contar o que vejo:

a vida ordena-se como a luz magra do poema
reparte-se em pedaços iguais
de verde, azul e branco
tudo cinzento por baixo,
os prédios que contrastam com o estádio de futebol
a loja dos chineses,
as placas que indicam que Figueira da Foz é mais ou menos na mesma direção
das minhas artérias.
uma ponte surge subitamente entre a janela e o poema.
os carros alinham-se em andamento
todos com a inspeção em dia
e as luzes ligadas à noite
e a vida ligada à morte
e a morte desligada

a apodrecer numa fruteira. 

sábado, 28 de março de 2015

O autocarro local

o autocarro local vai devagar pela alegria
porque de outra forma ruiria
as décadas queimadas pelo exagero dos pacientes
paz sem dentes
depois dela pouco resta a não ser apanhar o autocarro.
este carro é a manhã pós-soviética,
há estrelas ardidas pelo chão,
a noite foi inexplicável
e não é aplicável qualquer teoria emancipatória
muito em voga na história
e fervente na memória
não posso falar de esquerda aqui
muito embora me pareça óbvio
que a evidência do capital é residual
e seria normal querer ir noutra direção
mas o autocarro não muda
mudo pela estrada do pensamento
o mundo é um rebento

e enquanto não houver esperança há vida. 

sexta-feira, 27 de março de 2015

Na rua em Daugavpils

procuro metamorfoses da alma
explorar o universo da tua essência
à procura de mim em ti.
há neste percurso uma invasão consentida
ninguém sabe que galáxias profundas
dissimulamos por baixo da pele.
escuto o mar báltico no teu timbre.
um homem passa por nós
enquanto te pergunta em russo
o melhor sítio para propor casamento à amada.
subitamente sentes que percebes um pouco de tudo,
até de pedidos de casamento.
caminhamos num conforto tão grande
que disfarça os graus negativos da rua.
a vida é o nosso destino e aparentemente já chegamos

sem nunca ter partido.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Palco invisível

trago comigo as gigantes perguntas
que ardem no peso da fala.
de ti espero a noite corrompida,
a solidão contínua
que vai até aos prédios e retorna
mas acredito na tua companhia
como acredito na vaidade do sol
a vida ruge-me nos ombros
enquanto a vergonha respira
entre segredos.
onde estás e por onde andaste
são grutas miseráveis
que se erguem pela lógica
porque a tua presença não faz sentido
somos atores de um palco invisível
não te percas no retorno

porque a verdade é que nunca cá vieste.

terça-feira, 24 de março de 2015

A cidade

de si para si mesma
com as palavras na continuação das veias
a cidade a gravitar
nos fragmentos sensíveis dos verbos.
um movimento noturno
vive nos andares mais altos
da solidão.
a cidade genial precipita-se
na convocação dos homens
que se perdem e se encontram
no mesmo espaço.
a idade quente da terra
morre-me nas mãos ao passar
esta ponte triste
que vai dar a Setúbal.
não conseguirias pagar
as casas que eu vendo
nem que dobrasses a tua existência.
o tejo demora-me nos olhos,
lembra o som crepitante
da tua presença.

hoje amo quem rir.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Pelas estradas

se as árvores se diluem no alcatrão
e os campos temem os carros que nunca lhes tocam,
é porque o céu é uma miragem líquida
esquecida por cima das vidas alheias
que me trespassam a voz.
é quando deixo que o olhar se despiste violentamente
contra o pensamento
que desejo a vida dos postes de eletricidade.
dá-me a sombra do movimento
e a ansiedade nómada,
a paz de saber que todo o conflito é permanente.
dá-me todas as paisagens portuguesas que tiveres
preciso de um autorretrato de montanhas e mar.
preciso do sol a acender as vertigens
com uma nuvem impúdica
que cresce no reflexo dos dedos.
deixa que o autocarro entre a fundo no Inverno atlântico

a que chamamos casa. 

domingo, 22 de março de 2015

Ode à Adolescência

"Bleeding animals in a field of fire 
There is no absolution 
Death is but a fairytale 
They are mere visions 
They are afraid of me"


Ao João Bosco da Silva


hoje a tecnologia respira-nos a presença,
a loucura ao lume
numa parte incerta deste silêncio transnacional
onde o nosso diálogo é contínuo.
dantes, o corpete cor de vinho e o vinho como um rumor,
os pulmões queimavam já os cigarros precoces.
dantes, o teatro da tragédia e os palcos inacessíveis.
digamos: caí na adolescência como numa emboscada,
uma sobrevivência serena junto a um existencialismo incansável;
como um Nietzsche convocado no cemitério
ou Opeth no hardclub com o resto dos poetas.
uma rosa a Baudelaire e outra a Sartre
como prioridade na viagem de família a Paris.
todas as manhãs eram a continuação da noite
e todas as noites, minto, a tecnologia respirava presenças
já na altura.
era esta virgindade exausta que habitava o poema
inventava narrativas lubrificadas
inventava-te em lábios por estrear
queria a tua morada
sem saber se existias
e ainda assim escrevia-te, descrevia-te
e a fome sorria
enquanto alguém batia punhetas dolorosas
à custa do meu desprezo.
hoje a tecnologia respira-nos a presença
e eu na altura

a madrugada para a qual acordavas todas as manhãs. 

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

on the road / pelas estradas

on the road
if trees melt into the tarmac
and the fields fear the cars that never touch them
it’s because the sky is a liquid mirage
forgotten over the lives of other people
that are piercing my voice.
it’s when I let my gaze go violently off the road
against my thoughts
that i long for the life of electricity pylons.
give me the shadow of movement
and the nomadic yearning,
the peace of knowing that all conflict is permanent.
give me all the portuguese landscapes you’ve got
i’m in need of a self portrait of sea and mountains.
i’m in need of the sun to light up my dizziness
like an unashamed cloud
growing over the reflection of my fingers.
let the bus be driven deep into the atlantic winter
we call home
(transl. AH, 2015)


pelas estradas
se as árvores se diluem no alcatrão
e os campos temem os carros que nunca lhes tocam,
é porque o céu é uma miragem líquida
esquecida por cima das vidas alheias
que me trespassam a voz.
é quando deixo que o olhar se despiste violentamente
contra o pensamento
que desejo a vida dos postes de eletricidade.
dá-me a sombra do movimento
e a ansiedade nómada,
a paz de saber que todo o conflito é permanente.
dá-me todas as paisagens portuguesas que tiveres
preciso de um autorretrato de montanhas e mar.
preciso do sol a acender as vertigens
com uma nuvem impúdica
que cresce no reflexo dos dedos.
deixa que o autocarro entre a fundo no Inverno atlântico
a que chamamos casa.
Sara F. Costa

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Se a política me interessasse não tinha ressacas

a ressaca estalava das paredes sempre surpreendidas
superentendidas na matéria faziam sempre questão de mostrar
que amar era uma primavera despovoada
descuidada em delírios
dos escombros da noite emitiam-se vertigens
virgens de dedos frios
rios de ressurreição
a noite, parede, a noite era uma curva incessante
brilhante como uma boca tremida
queria caligrafia carnívora
porque há poemas que só comem carne
de mármore fotográfico
a ressaca e a garganta raspada pelas longas palavras
toda a noite sopradas na direção do teu coração
não é a política que me interessa é a expressão
corporal
oral, anal, virtual, sentimental,
desde que concordemos e acordemos
juntos.
o corpo de um animal, viral
na plenitude admirável

de uma insanidade infindável. 

O autocarro local


o autocarro local vai devagar pela alegria
porque de outra forma ruiria
as décadas queimadas pelo exagero dos pacientes
paz sem dentes
depois dela pouco resta a não ser apanhar o autocarro.
este carro é a manhã pós-soviética,
há estrelas ardidas pelo chão,
a noite foi inexplicável
e não é aplicável qualquer teoria emancipatória
muito em voga na história
e fervente na memória
não posso falar de esquerda aqui
muito embora me pareça óbvio
que a evidência do capital é residual
e seria normal querer ir noutra direção
mas o autocarro não muda
mudo pela estrada do pensamento
o mundo é um rebento

e enquanto não houver esperança há vida. 

Gerar ação

o sono é redondo e o sonho é a rede onde
os dedos magníficos da paisagem tocam deuses assombrados
a sombra dos brancos e cheios de crimes
que ri mesmo quando as letras estão molhadas
de segregação desta geração
de integridade pungente e a gente,
oh a gente, sonha à direita ou sonha para a frente
rente à miséria inspira devagar o incêndio
que em sendo linguagem é uma joia brusca
que se constrói falando do falo
e loucas as feministas expostas
em sombras indispostas
e as respostas em sangue permanente uma patente
na pele de um leitor moroso
amoroso de outra idade e idoneidade, vai-se lamentar
desta vida elementar de ser de uma geração
com perfume de reação
mas dentuça mediática, muito simpática
que dorme dorme por cima de toda a porcaria
porque queria ser gente abaixo do joelho
vê-se encostada a um quelho sem espelho para se desarranjar
e agora o medo crepita, a sirene apita
Jerusalém é rica e o capital atiça  
atiça o silêncio de não haver ideal
pelo qual morrer quando me mover.  

imagem lenta

vou enquadrar-te nesta folha
através de uma imagem lenta.
quero que saibas que penso em ti
e que o pensamento de ti é uma turbulência.
fazem hoje cem anos desde que a arte te previu
num sorriso de tabaco no canto da página.
não te quero dar conselhos apenas observar
que Janeiro é um mês altamente inflamável
e que sinto a sombra dos teus poros na minha pele.
peço-te ainda que me recues das palavras agudas
e deixes a cidade gravitar em mim,
sou carne sem fôlego e sem poética
numa clareza incessante cheia de árvores noturnas.

estendo-te a mão na noite contínua. 

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Versões Letãs / Latviešu Valodā

Sara F. Costa
Traduções para o Letão por / Tulkojumi ar Edgars Kucins




Augšuplāde (Upload)
ainavu spēks samaitā tekstu,
tas iedziļinās trauslumā.
taustes spēle, kvēlojošā, gleznainā spriedze
ap tavu vārdu -
tik saspringta tā ir, ka nav rādāma
bet es vienmēr varu skatīt to fotogrāfiju,
nejau uz sienām kā pagātnē, bet
es joprojām varu iesakņoties tavā zemapziņā caur
tavu sienu vienā no tiem sociālajiem tīkliem, kur nav vietas debatēm
tā kā katra persona ir savas realitātes diktators, kas varētu būt arī
ērti
kur mums ir iespēja tikai stāties pretī tam kas mūs
nešokē.
ļauj man iepriecināt ar spējām redzēt tevi un ar spējām zināt to ka tu redzi mani,
tā kā es esmu attēls, esmu miesīga viela, esmu mugura un pleci un acu plakstiņi,
es eksistēju tāpēc ka eksistē gaisma.
ļauj man augšuplādēt šo esamību tieši dziļākajā
atmiņā
dzimumdziņā.

ta laikam ir vieglāk. vārdi ir dzejnieku darīšana.



Upload

a força da paisagem corrompe o texto,
penetra-o pela sua fragilidade.
o jogo do tacto, da fulguração, da tensão cénica
do teu nome -
que de tão tenso não é revelável -
mas posso sempre revelar-te esta fotografia, 
não como antigamente, mas
posso sempre entranhá-la no teu subconsciente através do feed do 
teu mural numa dessas redes sociais onde não há espaço a debate 
porque cada pessoa é o ditador da sua própria realidade, o que até é bastante
conveniente
se na vida pudéssemos ser confrontados exclusivamente com aquilo que não 
nos choca.
deixa-me rejubilar com a força de ver-te e com a força de saber que me vês,
sou assim uma imagem, sou matéria carnal, sou costas e ombros e pálpebras,
existo porque existe a luz.
deixa-me fazer o upload desta existência directamente na memória 
mais profunda
da tua libido.
talvez seja mais simples. o texto é coisa de poetas.


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Nevainība 
raupjie rīti
sadedzina miegu
un drudzis uzputo vārdus vertikāli
tavs pirksts uz mana vārda iedarbojas ar mokošu spiedienu
un spazma skrien cauri šim tekstam
kamēr elle lēni perinās manās krūtīs
kā čūska rāpojot stundu svārstīgajā tukšumā
dzirksteles lido ārā no grāmatas
un liesmas dziedē ar katru neatlaidīgu elpas vilcienu
bet tur ir uzdevumi mazāk saldi kā citi
un tur ir zilbes kas liek vibrēt
nevainības visdziļākajam kodolam.

 Inocência

as manhãs primitivas 
queimam o sono
e a febre crepita pela parte mais vertical das palavras.
o teu dedo sobre o meu nome faz uma pressão insuportável
e há um espasmo que percorre este texto
enquanto o inferno nos nasce lentamente no peito
como uma cobra a rastejar junto às cavidades inseguras das horas.
dos livros soltam-se faíscas 
e as fogueiras cicatrizam com urgência cada respiração menos voluntária
mas há designações menos doces que outras
e há sílabas que se propõem a tentar vibrar 
até ao centro da mais funda inocência.

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Ego
es tevi meklēšu viscaur savam ķermenim,
es zinu ka tu apdzīvo mani,
paslēpts kaut kur manā ego.
ja tu neesi tur, tu esi iekšā zvaigznēs un tas ir tas pats,
tā ir filmas valoda, kura tev likās viduvēja jo tā bija abstrakta.
tas ir gramatikas hromatiskais spektrs
ko tu uzliec man,
tie ir kliedzoši satraukti nervi dzejolī
un tas ir pretī kliedzošs dzejolis
un vārdi atsprāguši nost caur cīpslām.
es iespiežu katru burtu visdziļākajā vientulībā
un lappuses cieš no zilbju svara.

Ego

vou procurar-te em toda a extensão do meu corpo,
sei que me habitas,
sepultado algures no meu ego.
se não estás aqui, estás nas entranhas das estrelas e é igual,
é a língua de um filme que achaste medíocre por ser abstracto,
é o leque cromático da gramática
que me impinges,
são os nervos exaltados que gritam com o poema
e é o poema que grita 
e as palavras que estremecem até aos tendões.
cravo cada letra até à mais profunda solidão
e as folhas lamentam o peso das sílabas.


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Tur ir mežonīgā gaisma 
tur ir mežonīgā gaisma kas pēta manu vārdu
lēni jūkot prātā
iekš atmiņu mitrām iekšām.
balss plašums
izplešas līdz sasniedz priekšmetu indīgo vecumu.

es sēžu vērojot pludmali
kā ūdens straumes pienak pārāk tuvu
gandrīz aizskarot jautājumu.

mani plakstiņi iztek līdz nerviem.

laika slīpumā ir neciešams aukstums
pāri katra vārda gipša veidnēm,
un drudžaina vieta, kur intelekts pamanās izirt
ar visām salasāmajām dzīves pēdām.
katrs vārds, savā dzemdes mierā,
vērdošo asiņu naktis,
nes neizrunājamu
smagu gaismu.


há uma luz selvagem

há uma luz selvagem que me percorre o nome
e que enlouquece lentamente
no interior húmido da memória.
o espaço da voz
expande-se até à idade irrespirável dos objectos.
sento-me a observar a praia
e a forma como a água tem medo de se aproximar demasiado
e pousar nas perguntas.
as pálpebras escorrem-me até aos nervos.
há um frio insuportável na passagem escorregadia das horas
no gesso de cada nome,
e um sítio febril onde a inteligência consegue deteriorar
todos os vestígios decifráveis de vida. 
cada nome, no interior imóvel do seu ventre,
no sangue fervido das noites,
transporta uma luz pesada,
impronunciável.