quarta-feira, 21 de maio de 2014

As árvores

as árvores vigiam a cidade do alto das montanhas,
falam alto entre si para aprisionar o excesso de movimento.
se a manhã se desprende das imagens como um tiro
é porque há um murmúrio a queimar
a parte mais côncava desta gramática
e eu quero deixar claro que a minha respiração é branca
como o mundo.
não há motivos para alarme, trago a febre toda reduzida a caligrafia
e isso será o suficiente para recobrir o corpo de silêncio,
caso seja necessário.
e as árvores lá no alto e por toda a extensão das montanhas
estarão a dar à língua como quem se debruça
para a boca negra de um átomo que não vemos
mas que se entrepôs entre nós e os movimentos
e que nos oculta as coisas mais importantes como
uma paisagem de sal a dançar entre as mãos
ou um céu fabricado especialmente para os nossos lábios
numa fábrica perfeita sem miséria, ou outras etnias ou outras idades
que nunca foram as nossas.
as árvores crescem independentemente dos nossos objectivos
e por vezes até nos crescem para dentro dos objectivos
as árvores são o que tu não conseguiste prever,
mas que cresceu independentemente.
são o que nos vigia, independentemente
fazem-nos sombra independentemente de me achares uma jovem escritora
mediana com algum potencial por explorar ou não
independentemente de achares que sorrio demais, que sou um rio a mais
que sou um rio
mas este poema é sobre árvores
agora, as árvores não cessam de brotar ramos no meio das palavras
a incomodar as palavras e a sua natural fluidez porque as palavras
também fluem
e é por isso que falamos em ser-se fluente
como se as estivéssemos a fazer deslizar por alguma superfície escorregadia
a toda a velocidade em direcção
às árvores que não estão em cima mas as que estão em baixo
e que são o esquecimento involuntário
de todas as coisas que realmente te magoam.

in O Sono Extenso, Âncora Editora