é aqui que te vou encontrar quando um sorriso terminal
me encostar contra a parede como tu me encostas sem dó contra a minha fragilidade.
toda a gente nos vê da ponta do ódio onde nos encontramos
e eu queria perguntar-te o que achas da minha condescendência quando te explico de forma extremamente racional
aquilo que tu fazes instintivamente.
e de que me importa a razão se o teu domínio é esta noite perdida entre vodka e insónias.
queria voltar para uma casa onde me pudesse proteger ou onde pudesse adormecer para sempre ou até sempre
que será quando esta dor passar no dia seguinte, depois de ter finalmente descansado e o meu corpo ressacar a adrenalina do teu sadismo.
mas por enquanto só quero regressar à infância, ao quintal do meu avô onde os pêssegos tombavam para a minha inocência e os caracóis tinham uma maneira própria de me sugar a dor,
quero voltar ao frio insuportável da sua casa em dia de festa e aos altifalantes febris que se me cravavam por dentro, dando ao acordeão popular e aos guinchos de rancho uma melancolia reflexiva que só a minha sensibilidade podia filtrar.
voltar ao pó dos pires e chávenas de porcelana intocáveis que sempre me pareceram ser utilizados em cerimónias divinas por princesas etéreas numa realidade para além da vida.
a vida que até então eu apenas supunha que fosse
mas que nem se revelou assim tão diferente do que eu poderia antever
até me largar aqui a encher a barriga de tédio, a mergulhar com persistência nas teias perversas dos teus instintos e a culpar-te por isso.
dá-me só um segundo da tua inconsciência e eu aguento a lucidez de que os outros continentes não são muito diferentes do nosso e assim posso regressar sem remorsos ao berço.
dá-me a tua dor e os teus medos
acho que gosto de me defender das tuas defesas, acho que me viciei.
deixa-me escrever-te aqui no meio do paralelismo mais despropositado entre aquilo que foram umas quecas e aquilo que foi a minha infância,
deixa-me atingir este ponto de absurdidade porque já é tarde e o mundo arrasta-se numa felicidade antiquada
e não há nada que me dê mais prazer do que arranhar o cume das improbabilidades, isto sem querer dizer que não me tenhas dado prazer,
tu e os outros
mas a questão é que
eu sei que há um sítio algures nos meandros da minha imaginação onde o vinho é tão negro como o céu e as plantas crescem dos poros das lágrimas
e é onde tu estás, tu e as tuas dores e os teus medos que transformas em flechas sangrentas na minha direcção
só porque eu me pus no teu caminho na esperança de chegar a ti
e continuo a usar a segunda pessoa como se realmente acreditasse que algum dia fosses ler isto e pensar, espera ela está a escrever sobre mim,
porque na realidade estou, e se estás a ler isto pensa apenas que o meu sorriso é terminal e a minha fragilidade é meramente temporária e a casa do meu avô continua a ser o meu sítio predilecto para morrer.